Ciranda de Retina e Cristalino

Espetáculo e documentário criado durante 2020 e 2021,  parte do projeto Poéticas da Diversidade, contemplado pela 27ª edição de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo e circulação com o projeto Frestas Poéticas: cartografia do corpo diverso no urbano contemplado pela 31ª edição de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo

Espetáculo foi criado durante a pandemia em 2020 e 2021 com ensaios online.  A Cia seguiu trabalhando em isolamentos, os bailarinos e a coreografa se encontravam semanalmente para pesquisar, criar ações educacionais e o espetáculo que por sua vez com sutiliza reflete um pouco destes tempos. Espetáculo em circulação em 2022 e 2023

Ciranda de Retina e Cristalino traz entre outros os personagens;

  • Retina – mulher com baixa visão que baila atrás de sua janela;
  • Cristalino – jovem com baixa visão que se equilibra e faz peripécias com sua bengala verde e sua roda iluminando, seu espaço;
  • Cecilia – jovem que baila com seu olho roda com grandes cílios;
  • Iris e Cornélia – dançarinas com duas faces dançam e refletem suas imagens em um grande espelho.

Todos os intérpretes no começo estão isolados em seus círculos de marcados por desenhos de giz no chão e a luz. Eles estão conectados por suas narrativas corporais e as vezes se unem em uma só coreografia de diversos corpos afastados, para ao final do espetáculo mesmo a distância estarem  ligados por grandes elásticos em uma grande ciranda da memória.  Este espetáculo como em todas as obras da Cia a improvisação tem um papel fundamental na criação da dramaturgia e na preparação do elenco. Dos improvisos surge a dança com seus simbolismos. As composições coreográficas são cuidadosamente desenhadas com os corpos dos bailarinos e suas características únicas, juntamente com a trilha e a iluminação. “A dança nunca é somente sobre a dança, nem neutra e sim rica em significados.”  Durante o espetáculo a ilimunação se torna um elo de improviso com os bailarinos desenhando limites e dialogando com as movimentações. Toda a trilha foi também composta em uma parceria entre o som, a melodia o silencio e as movimentações únicas de cada cena.

O elemento círculo, a roda que girar- gira e da volta rodando na ciranda da memória lembrando a ciranda sem fim se tornaram poesia, movimento e canção. Com diz a letra da ciranda composta por Fernanda Amaral e Wagner Dias o espetáculo “Foca e descoca provoca um novo olhar em uma só virada”… “do mundo que gira, gira e dá voltas lembrando da Ciranda sem fim.”

O espetáculo é dividido em 3 Olhares
Primeiro Olhar – Todos o elenco
Segundo Olhar – Personagens aparecem Personagens
Terceiro Olhar – O elenco e os personagens se reencontram
Serão ilusões? Quando desfocado focado estiver.” – texto de Fernanda Amaral

Ao final ficamos com as algumas perguntas entre elas;
“Que olhar teremos? Será que nossa visão voltará?
Será que ainda vamos focar, quando tudo virar só lembrança?
Que memórias sobrarão? Serão alucinações?
Serão ilusões? Quando desfocado focado estiver.” – texto de Fernanda Amaral

         Flutuação: do corpo possível ao impossível transcendente.
                         Leitura cultural do espetáculo – Ciranda de Retina e Cristalino,
                          no Teatro Sérgio Cardoso,  São Paulo, 9 e 10/9 de 2023.
                                                                                                                           Cremilda Medina*  
        O corpo inteiro do espectador e, presumo, o corpo possível das deficiências, se conjuga de imediato com a flutuação do sentir na apresentação de palco aberto dos próprios artistas e seus símbolos expostos. A luz e a música, numa delicadeza que só criadores sutis são capazes de nos oferecer, envolve esse deslize dos gestos da Arte. O espetáculo do grupo Dança sem Fronteiras, dirigido por Fernanda Amaral, artista que, de longa data atua no Brasil e na Europa, prima pela ousadia de expor o movimento rítmico surpreendente do corpo possível dos bailarinos à transcendência do impossível que só a força poética é capaz de sustentar.
        A nós, público presente, só nos resta a entrega sensível, porque as cenas giram em torno de símbolos contagiantes: em lugar de objetos fechados em realismo, somos envolvidos por objetos/sujeitos do imaginário humano, a sublinhar, círculos no palco; escada para um inacabado teto; rodas e rodas que de tantos usos podem significar, inclusive o dos cadeirantes; afixado em um cabide o grande olho do mundo; na projeção da tela ao fundo, janelas se sucedem, abertas sem rumos definidos nem perspectiva de se fecharem… O mundo metafórico dos passantes em dança (sem fronteiras) se reflete em nós, espectadores, sempre que é filtrado em um enorme espelho, ao lado esquerdo, no fundo do palco.
        E, no entanto, não são as coisas que nos levam para dentro e, sim, o abraço imprevisível que os dançantes lhes dão, o malabarismo artístico com que eles se fundem, o círculo que delimita os passos e o movimento do corpo possível até mesmo de quem se arrasta sem possibilidade de ficar em pé ou dos de baixa visão que só apalpam com os pés a direção ao seu espaço circular demarcado a giz. O encantamento toma conta de nossa recepção, pois não se exibem movimentos da superação. Não, o que percebemos é a excelência criativa da Dança sem Fronteiras. Diante do painel artístico do coletivo  ou da personalidade individual dos bailarinos – casais, duplas ou sozinhos – como não embarcar nessa não demarcação das reais possibilidades e navegar na loucura da viagem transcendente dos corpos, da música e da encenação proposta?
        Perde-se a dimensão do tempo e do espaço, desliza-se na modulação de momentos agudos, momentos líricos, momentos de afirmação de contato conosco, espectadores, momentos afirmativos e surpreendentes momentos interrogativos, tudo regido por corpos contorcidos, mãos que falam tanto com as expressões dos rostos. Que importa certas impossibilidades no corpo de dança se a força transcendente rege a sinfonia de gestos?
Praticamente sem palavras,  a Ciranda, dança final de fitas e cantoria, culmina o espetáculo com a amarradura da cultura brasileira. Voltamos ao chão local e aplaudimos o espetáculo aqui criado, dirigido e apresentado para nossa emoção e, certamente, para emocionar outros públicos de outras latitudes. Afinal o impossível transcendente não conhece fronteiras.
                                                                                                             (São Paulo, 11 de setembro de 2023)
*Cremilda Medina (Jornalista, pesquisadora e professora titular da Universidade de São Paulo, é autora de quinze livros e organizou mais de cinquenta coletâneas interdisciplinares em várias universidades.)